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1A digitalização é mais predominante entre as profissões altamente qualificadas: Índice de Digitalização (ID) superior a 0,5.
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2A aparente falta de relação entre a rotinização e as competências sugere que a automatização em Portugal não é um fenómeno sujeito necessariamente a um enviesamento pelas competências.
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3A maioria das profissões apresenta um risco relativamente baixo de automatização digital, quer porque as tarefas se caracterizam por níveis baixos de digitalização ou por não estarem muito rotinizadas: Índice de Digitalização (ID) ou Índice de Rotinização (IR) abaixo de 0,5.
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4Os técnicos e o apoio administrativo apresentam o maior risco associado à automatização digital: Índice de Digitalização (ID) e Índice de Rotinização (IR) acima de 0,5.
Introdução
A invenção do transístor, em 1947, foi a centelha que acendeu o passo seguinte da transformação económica da humanidade. O transístor foi o ponto de partida para o aparecimento do microchip, que, por sua vez, permitiu o desenvolvimento das tecnologias digitais. O primeiro computador disponível comercialmente, uma máquina simples, foi concebido para substituir as máquinas de calcular de cartão perfurado usadas em contabilidade para introduzir dados na forma de furos puncionados. Agora, 75 anos depois, a tecnologia informática tornou-se cada vez mais omnipresente e está a moldar a maioria dos aspetos da vida contemporânea. A tecnologia digital transformou o modo como os governos, as empresas e os indivíduos interagem e trabalham. No entanto, face aos processos de transformação digital em curso, muitos se questionam sobre a forma como a adoção das novas tecnologias vai afetar o mercado de trabalho. Estas questões deram palco a debates controversos sobre o potencial da digitalização na reestruturação do trabalho, incluindo a criação ou destruição de postos de trabalho. Por último, a crescente adoção da inteligência artificial (IA), da robótica e da tecnologia digital em geral levantou alguns receios de que a digitalização possa ainda despoletar uma nova etapa de desenvolvimento económico, em linha com a tese de Rifkin sobre o fim do trabalho.
Ao longo das últimas décadas, as preocupações com os riscos da informatização e do desemprego impulsionado pela tecnologia têm sido alvo de atenção académica, que é materializada em vários estudos. Esses estudos defendem com frequência que a mudança tecnológica está enviesada por determinadas competências, as quais podem polarizar salários e exacerbar as desigualdades existentes. De forma ainda mais substancial, pode afetar os trabalhadores com qualificações médias e baixas, aumentando o respetivo risco de perda involuntária do posto de trabalho (job displacement). No entanto, a relação entre a digitalização e a perda involuntária do posto do trabalho não é homogénea em todas as profissões. Face ao exposto, para perceber estes processos, será necessário desconstruir os elementos que constituem as próprias profissões, permitindo uma perspetiva mais refinada do modo como a digitalização evolui no contexto descrito. Por conseguinte, em vez de se concentrar nas profissões, o estudo adota uma abordagem baseada nas tarefas, que olha para uma profissão como um conjunto de tarefas. Esta abordagem centrada nas tarefas e nos trabalhos reflete a natureza técnica específica do processo de produção e, assim, serve melhor o propósito de avaliar objetivamente o impacto da digitalização nos postos de trabalho.
Naturalmente, algumas tarefas podem ser mais vulneráveis à mudança tecnológica do que outras. A tecnologia informática é conhecida por ser particularmente adequada para executar algoritmos, isto é, desempenhar um conjunto de tarefas sequenciais numa ordem predeterminada que segue regras específicas. Com base nesta premissa, conclui-se que as tarefas de rotina são mais fáceis de automatizar uma vez que podem ser desconstruídas em atividades sequenciais e programadas em conformidade. Ao desconstruir as profissões nas tarefas que as compõem e adotando uma análise centrada na relação entre a digitalização e a rotinização de tarefas, é possível obter uma compreensão mais clara dos impactos da digitalização no trabalho em matéria de automatização. O estudo no qual se baseia este artigo pretende trazer maior visibilidade a estes processos no contexto português.
A partir da discussão acima mencionada, o estudo procura responder a duas questões:
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Existe uma distribuição desproporcional de trabalhadores qualificados e não qualificados entre profissões com maior e menor nível de digitalização, em Portugal?
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Estão os trabalhadores de baixas qualificações mais expostos ao risco da automatização digital com base no nível de digitalização e no número de tarefas de rotina que compõe cada profissão?
Os investigadores procuram responder a estas questões a partir de uma abordagem inovadora, baseada no trabalho de Cirillo et al. (2020), e implementam dois índices que procuram caracterizar as profissões de acordo com o respetivo nível de digitalização – Índice de Digitalização (ID) – e de rotinização – Índice de Rotinização (IR) –.
1. A digitalização é mais predominante em profissões com trabalhadores altamente qualificados
As profissões variam substancialmente em termos de conteúdo de trabalho e respetivas tarefas. As características técnicas e organizativas do trabalho, usualmente específicas de cada posto de trabalho ou categoria ocupacional, contribuem para esta heterogeneidade. Por isso, não é fácil avaliar o nível de digitalização das profissões. Para abordar este desafio, os autores desenvolveram um Índice de Digitalização (ID), que avalia a proporção das tarefas digitais que compõem as profissões e a importância das tecnologias digitais na sua concretização. Quando aplicaram este índice, descobriram diferenças significativas na utilização e importância da tecnologia digital nas diferentes profissões em Portugal. A figura 1, por exemplo, evidencia que as profissões com maior nível de qualificação, tais como gestores, quadros profissionais ou técnicos, se caracterizam por ter os níveis mais elevados de digitalização (ID > 0,5). Em contraste, as profissões com nível de qualificação médio ou baixo, à exceção dos técnicos e trabalhadores do apoio administrativo, se caracterizam por níveis consideravelmente inferiores de digitalização (ID < 0,5). Estes resultados serviram de evidência aos investigadores de que estamos perante uma digitalização enviesada pelas competências no contexto português, ou seja, a digitalização é mais predominante entre as profissões que se caracterizam por ter trabalhadores altamente qualificados.
2. Não existe uma relação aparente entre as competências e a rotinização do trabalho
Para poder estudar o risco da automatização das profissões com base na sua rotinização, o estudo implementou um Índice de Rotinização (IR) (Autor et al., 2003), centrado nas tarefas cognitivas e não cognitivas, a fim de determinar o correspondente nível de rotinização. Através da implementação deste índice, os investigadores não descobriram nenhuma relação entre as competências e a rotinização das tarefas que compõem as profissões em Portugal. De facto, se observarmos a figura 2, torna-se evidente que a maioria das profissões, com exceção dos técnicos, dos trabalhadores do apoio administrativo e dos operadores de máquinas, apresentam um Índice de Rotinização baixo (IR < 0,5). Esta falta de relação entre as competências e o nível de rotinização sugere que a automatização em Portugal não resulta de um enviesamento pelas competências.
3. Os técnicos e trabalhadores do apoio administrativo apresentam o nível mais elevado de exposição à automatização digital
Através de uma análise da relação entre a digitalização e a rotinização, os autores avaliaram o risco de automatização digital nas profissões em Portugal. Os resultados sugerem que as profissões com níveis elevados de digitalização e rotinização apresentam um maior risco de automatização digital. Esta relação é ilustrada na figura 3. Cada ponto representa as profissões subordinadas que tradicionalmente são agrupadas por profissões (gestores, profissionais, técnicos, etc.) As profissões consideradas como estando em maior risco de automatização são aquelas com uma maior concentração de profissões subordinadas no quadrante superior direito. Muito embora a rotinização se apresente como aparentemente heterogénea, emergem algumas tendências interessantes da sua combinação com a digitalização. De modo global, a maioria das profissões apresenta uma baixa exposição ao risco da automatização digital, quer seja devido ao baixo nível de digitalização das tarefas (ID < 0,5) ou porque não são muito rotinizadas (IR < 0,5). No entanto, existem duas categorias ocupacionais – técnicos e trabalhadores do apoio administrativo – que se destacam das restantes por terem um risco superior de automatização digital (ID e IR < 0,5). De forma particular, estas profissões são frequentemente altamente dependentes das tecnologias digitais e caracterizam-se por um determinado grau de rotinização, mesmo que não se caracterizem pelo baixo nível de qualificações.
4. Conclusões
A teoria economia clássica releva o papel da mudança tecnológica no acentuar das diferenças salariais entre trabalhadores. Tradicionalmente, os trabalhadores altamente qualificados são os maiores beneficiários da introdução de novas tecnologias, as quais são vistas frequentemente como sendo complementares do respetivo trabalho. Por sua vez, os trabalhadores com baixas qualificações correm maior risco de serem substituídos por essas mesmas tecnologias. Este fenómeno traduz-se depois numa procura crescente de trabalhadores altamente qualificados, daí o termo mudança tecnológica enviesada pelas competências. Neste modelo, assume-se que a tecnologia tem um impacto homogéneo na estrutura do mercado de trabalho, aumentando artificialmente a procura por trabalhadores altamente qualificados.
Nos termos da abordagem com enviesamento pelas competências, foi proposta uma perspetiva nova e mais refinada para explicar o impacto da mudança tecnológica no mercado de trabalho, com um enfoque particular na informatização. Esta nova perspetiva centra-se principalmente no modo como a tecnologia determina em que medida as tarefas de produção são atribuídas ao fator capital-trabalho. Os proponentes desta abordagem defendem, no essencial, que a digitalização passa pela reafetação de um conjunto de tarefas, geralmente caracterizado por níveis elevados de rotina, do fator capital-trabalho à tecnologia digital, daí o termo mudança tecnológica enviesada pelas rotinas. De referir, a este respeito, que o nível de rotinização do trabalho se sobrepõe às competências, em matéria de avaliação do potencial para a automatização digital.
As duas abordagens descritas acima repercutem os resultados da pesquisa em que o presente artigo se baseia. Os dados vêm demonstrar uma digitalização enviesada pelas competências da força de trabalho em Portugal. Existe uma relação claramente positiva entre as competências ocupacionais e o respetivo nível de digitalização, ou seja, as profissões com nível de qualificação superior apresentam um maior nível de digitalização. No entanto, os investigadores também evidenciaram que as profissões caracterizadas pelo baixo nível de qualificação dos trabalhadores não estão necessariamente associadas a um maior risco de automatização digital. Isto é importante tendo em conta que a automatização digital foi uma das principais preocupações levantadas pelos investigadores e legisladores em termos de análise do risco potencial de destruição do emprego pela digitalização. Contudo, uma primeira leitura dos dados sugere que a maioria das profissões em Portugal ainda é caracterizada pelo baixo risco de automatização digital, e, nessa medida, por um baixo risco de substituição do posto de trabalho. No entanto, tal poderá indiciar que as tarefas ainda se caracterizam por um baixo nível de digitalização ou rotinização. Além disso, e de forma talvez ainda mais surpreendente, as profissões com o maior risco de automatização digital são, de facto, profissões com nível de qualificação médio e alto: técnicos e trabalhadores do apoio administrativo, respetivamente.
Em 2021, os técnicos e os trabalhadores do apoio administrativo representavam cerca de 21,9% dos trabalhadores, em Portugal. Por isso, subsiste ainda a preocupação com o elevado risco de automatização digital para estas categorias ocupacionais. Deve, porém, ter-se em consideração que estes processos não vão acontecer da noite para o dia, e que, além do mais, a digitalização não é um processo exclusivamente destrutivo. A digitalização pode, naturalmente, estar na origem da automatização de algumas tarefas, tornando determinados grupos de tarefas obsoletos. No entanto, é de esperar que venha a gerar uma procura por novas tarefas e profissões. Assim, para uma avaliação abrangente do impacto potencial da digitalização, a análise terá de ir muito para além de uma leitura técnica das profissões e tarefas e obriga a um olhar mais demorado para o contexto específico dos trabalhadores afetados por estas transformações.
A este respeito, os dados da pesquisa revelam que, não obstante uma grande maioria de inquiridos se mostrar otimista quanto ao futuro do posto de trabalho, os trabalhadores com baixo nível de qualificação mostram-se preocupados com o que um ambiente de trabalho cada vez mais mediado pela tecnologia poderá representar para eles no futuro. Isto não surpreende, tendo em conta que os trabalhadores com baixo nível de qualificações estão menos preparados para se adaptarem às mudanças nas condições laborais que ocorrem forçosamente quando a digitalização dos postos de trabalho se torna cada vez mais a regra. Se olharmos para o caso particular dos técnicos e trabalhadores do apoio administrativo em Portugal, o facto de estes trabalhadores possuírem um nível de qualificações mais elevado deve também indicar que estão mais bem preparados para lidar com as transformações provocadas pelas mudanças tecnológicas. Dada a correlação entre as competências elevadas e a digitalização, também se pode inferir que, uma vez que as tarefas destes trabalhadores são altamente mediadas pela tecnologia, estes trabalhadores estarão mais familiarizados, e, portanto, menos pessimistas, com as mudanças que a tecnologia pode representar para eles em termos profissionais. Pelo contrário, como os trabalhadores com baixo nível de qualificação interagem menos com a tecnologia, revelam maior ansiedade e suspeição face às mudanças tecnológicas.
Em conclusão, o estudo deve levar-nos a retirar algumas considerações em termos de desenvolvimento de políticas. Embora a automatização digital tenha acelerado nos últimos anos, é improvável que os seus impactos na destruição de postos de trabalho ocorram subitamente. As ocupações são constituídas por diferentes grupos de tarefas que podem ou não ser automatizadas pelos avanços tecnológicos. A substituição de postos de trabalho não depende do nível de rotinização e automatização de uma tarefa em específico, mas sim de um conjunto de tarefas, e, como tal, não é um resultado óbvio dos processos de automatização. À medida que as tarefas são substituídas pela tecnologia, novas tarefas poderão, por sua vez, ser atribuídas aos trabalhadores, caso, por exemplo, da manutenção da nova infraestrutura tecnológica. Estes processos sugerem que, à medida que se assiste ao incremento da mudança tecnológica, os trabalhadores, organizações e políticas em geral terão de se adaptar rapidamente para poderem acompanhar estes desenvolvimentos. Embora as políticas públicas devam promover condições para a atualização tecnológica das organizações, e respetiva transformação digital, devem também apoiar a inovação complementar nos processos organizacionais e a adaptação e formação do capital humano para uma melhor adaptação a mudanças tecnológicas mais amplas e correspondente base de competências. O objetivo destas políticas deverá ser a mitigação dos impactos negativos dos avanços tecnológicos no trabalho e no emprego, promovendo, ao mesmo tempo, os benefícios que decorrem deste processo. O investimento em capital humano é fundamental para equipar os trabalhadores com as ferramentas necessárias para enfrentar o progresso tecnológico. As novas competências e a atualização e a reciclagem de competências terão um papel fundamental neste empreendimento.
5. Limitações do estudo
A análise e os resultados apresentados no estudo são uma consequência direta do método usado. Neste âmbito, as escolhas feitas pelos autores influenciaram os resultados e a sua respetiva interpretação. Foram três as escolhas particularmente relevantes. Em primeiro lugar, os autores decidiram usar uma abordagem baseada em tarefas. A principal razão desta escolha foi permitir desagregar as profissões numa unidade de análise mais realista e eficaz na medição e quantificação do impacto da mudança tecnológica no trabalho. No entanto, as profissões são mais do que tarefas. Esta abordagem não considera outros fatores importantes do contexto de trabalho, como a socialização, que é uma parte indissociável da vida diária dos trabalhadores. Em segundo lugar, esta análise é centrada principalmente na automatização digital e não na robotização, uma vez que aquela é mais característica da mais recente onda de mudança tecnológica. Tendo em conta que a robotização atua principalmente como um substituto de trabalhadores com baixas qualificações, e que, conforme os resultados da pesquisa, a rotinização das qualificações não deve ser negligenciada, a correspondente análise pode fornecer perspetivas adicionais sobre o tema. Finalmente, os dados foram recolhidos principalmente em níveis ocupacionais de 2 dígitos da categoria ISCO-08, o que permite mitigar quaisquer diferenças acentuadas que possam surgir ao considerar as profissões numa perspetiva mais refinada
6. Referências
AUTOR, D. H., F. LEVY, e R. J. MURNANE (2003): «The Skill Content of Recent Technological Change: An Empirical Exploration», The Quarterly Journal of Economics, 118(4), 1279-1333.
CIRILLO, V., et al. (2020): «Digitalisation, routineness and employment: An exploration on Italian task-based data», Research Policy, 50(7). 104079.
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