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1Meninos e meninas açorianas têm um nível de desempenho nas HMF inferior aos seus pares matosinhenses.
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2Os meninos são sistematicamente mais habilidosos do que as meninas ao longo da idade.
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3Independente do local em que vive e do género quanto mais habilidosas forama s crianças do ponto de vista motor, tanto melhor será o desempenho nos testes de força muscular.
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4Independente do local em que vive e do género quanto mais habilidosas forama s crianças do ponto de vista motor, tanto melhor será o desempenho nos testes de força muscular.

Parte 2: Introdução
2.1. A competência motora, a relação com a saúde e o desenvolvimento da criança
Imagine que a partir de 2024, 80% das crianças que concluírem a escolarização básica não saibam ler ou escrever com proficiência. Este resultado teria impactos drásticos não apenas nessas crianças, mas também em todo o processo educativo e de integração social. Imagine, agora, que essas mesmas crianças terminem o 1º ciclo do ensino básico sem dominar um conjunto de habilidades motoras fundamentais que são essenciais para o seu desenvolvimento físico, motor e cognitivo. O que poderia acontecer?
Para responder a esta pergunta, é necessário que o leitor entenda o que são estas habilidades. As HMF são uma espécie de “blocos de construção” que servem de base para a aquisição de habilidades motoras mais complexas como, por exemplo, as habilidades desportivas. Habitualmente, as HMF estão agrupadas em três categorias: (i) habilidades locomotoras (p. ex. correr ou saltar); (ii) habilidades de controlo de objetos (p. ex. lançar ou pontapear); (iii) habilidades estabilizadoras (p. ex. rolar e equilibrar-se num só pé). Espera-se que as crianças realizem estas habilidades com um elevado nível de proficiência até aos 9-10 anos de idade. O seu desempenho expressa o seu nível de competência motora.
Estudos atuais mostram que crianças com baixo desempenho nas HMF não serão capazes de desenvolver habilidades motoras mais complexas, i.e., apresentarão um baixo desempenho sempre que jogarem futebol, voleibol, basquetebol ou qualquer outro desporto que envolva a combinação de HMF. Além de restringir o seu processo normal de desenvolvimento motor, o baixo desempenho nas HMF condiciona negativamente outros aspetos do desenvolvimento humano, como o desenvolvimento cognitivo, o desempenho académico, as interações com os pares, os níveis de atividade física e a participação desportiva. Em suma, a baixa competência motora contribui, também, para duas das principais pandemias atuais: o sedentarismo e a obesidade em crianças de idade escolar.
De acordo com a UNESCO e outras pesquisas recentes, cerca de 80% das crianças em idade escolar não cumprem as recomendações diárias de atividade física propostas pela Organização Mundial da Saúde. É hoje sabido que crianças sedentárias tem maiores chances de se tornarem adultos sedentários. A literatura atual tem mostrado que o sedentarismo nos adultos está associado a diversas doenças, como problemas cardíacos, cancro, diabetes e acidente vascular cerebral. Assim, se quisermos contribuir para termos uma sociedade mais ativa e saudável é essencial que se comece na infância, e que as crianças terminem o 1° ciclo de ensino com proficiência nas HMF, caso contrário o seu desenvolvimento físico, motor, emocional e cognitivo poderá ser comprometido.
Apesar da importância reconhecida que a proficiência nas HMF tem no desenvolvimento, pesquisas à escala mundial mostram, consistentemente, que crianças e adolescentes têm um baixo desempenho nestas habilidades. Pode inferir-se, pois, que para além de serem menos ativos, crianças e jovens estão a perder, também, a capacidade de se moverem com qualidade. É urgente mudar este cenário
2.2. Como desenvolver a competência motora em crianças?
Orientação, incentivo e oportunidades são condições essenciais para o desenvolvimento adequado das HMF. Sem dúvida que estas três condições podem ser influenciadas por fatores de natureza contextual em que a criança está inserida. Consideremos dois cenários hipotéticos: o do João e o do Pedro. O João nasceu numa cidade que oferece múltiplas oportunidades para ser fisicamente ativo, como ir para a escola de bicicleta e praticar diferentes desportos. A sua escola conta com espaços amplos para correr e brincar com os amigos. Nas aulas de Educação Física, o João e os seus colegas são avaliados com regularidade, e o professor usa essa informação para desenvolver oportunidades adequadas para todos, orientando os alunos de acordo com as suas necessidades. Além disso, os pais e os amigos do João incentivam-no nas suas práticas desportivas. Este conjunto de fatores contextuais são ideais para o desenvolvimento da sua competência motora. Por outro lado, temos o Pedro que nasceu num local com poucas oportunidades para a prática de atividades físicas generalizadas. A sua escola não tem muitos espaços para brincar, e os professores não realizam avaliações para planearem, em conformidade, aulas dirigidas a todos e a cada um em termos do seu desenvolvimento motor. Além disso, os pais e os amigos do Pedro não o incentivam para a prática de atividades físicas e/ou desportivas. Estas barreiras contextuais representam o pior cenário para o desenvolvimento da competência motora de qualquer criança e jovem.
Claro está que nestes exemplos hipotéticos de Pedro e João foram apresentadas duas situações contextuais antagónicas para uma melhor ilustração dos seus efeitos no desenvolvimento da competência motora. No mundo real nem sempre estas diferenças são tão evidentes, mas é obvio que em diferentes cidades e regiões de Portugal os contextos são bem distintos. Convém ter presente, também, que o mundo passou por uma das piores crises jamais registadas na história recente e que alterou a rotina de crianças, jovens, adultos e idosos. A pandemia causada pela COVID-19 fez com que as crianças em idade escolar tivessem pouca ou quase nenhuma oportunidade de desenvolver as suas HMF. Neste caso, podemos mesmo dizer que o que já era considerado como baixo nível de competência motora pode ter piorado ainda mais. Urge, portanto, investigar o nível de proficiência apresentado pelas crianças do 1º ciclo de ensino da Região Autónoma dos Açores e de Matosinhos após a pandemia da COVID-19.
1. Parte 3. Resultados e Discussão
3.1. Nível de desempenho das crianças açorianas e matosinhenses
Ao contrário de outras medidas do desenvolvimento humano que possuem valores normativos esperados em função do género e da idade (p. ex. peso e altura), as HMF não possuem tabelas de referência. Não obstante esta limitação, os modelos disponíveis de desenvolvimento motor indicam que, por volta dos 7 e 8 anos de idade, as crianças apresentam potencial físico, motor e cognitivo para dominar as HMF. O estudo que está na base deste facto foi publicado no início dos anos 80 do século passado. Os resultados mostraram que aos 8 anos de idade (meninos) e aos 9 anos de idade (meninas) mais de 60% já dominavam pelo menos oito das nove HMF avaliadas. Para efeitos de comparação, utilizaremos estes resultados, com os das crianças de Matosinhos e da Região Autónoma dos Açores (Figura 1), onde foram avaliadas apenas cinco HMF (driblar, pontapear, lançar, rolar a bola e receber).
Os resultados mostram uma forte heterogeneidade entre a percentagem de meninos e meninas matosinhenses e açorianos que dominam as cinco HMF avaliadas:
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Em primeiro lugar, há uma diferença expressiva no desempenho das crianças americanas (valores publicados em 1980) e as portuguesas (dados de 2022-2023), e que pode estar relacionada com diferenças nas oportunidades de desenvolvimento das HMF vivenciadas pelas crianças em 1980 e 2022-2023. A rápida urbanização e a sua expansão têm estado associadas a um fenómeno caraterizado pela diminuição de espaços públicos adequados para a prática de atividades físicas e recreativas pelas crianças. Tal desenvolvimento pode ser percebido como um fator contribuinte para a redução das oportunidades de desenvolvimento das HMF em ambientes urbanos contemporâneos. Além disso, preocupações com a segurança das crianças nas ruas e espaços públicos podem levar os pais a restringirem as suas atividades ao ar livre e a supervisionarem mais de perto as suas brincadeiras. Isso pode limitar as oportunidades das crianças explorarem diferentes habilidades de forma independente e criativa. Neste sentido, esta transformação do ambiente urbano pode resultar em restrições significativas no acesso a locais adequados para atividades físicas ao ar livre, impactando adversamente o desenvolvimento motor das crianças e contribuindo para as disparidades observadas no desempenho das HMF entre diferentes contextos temporais e culturais. Daqui que reste somente, e na maioria das vezes, o “espaço escolar” onde a criança pode vivenciar oportunidades para o desenvolvimento das suas habilidades. Convém ter presente, também, que as crianças da atualidade estão mais expostas ao tempo de ecrã. Há estudos que mostram que quanto maior o tempo de ecrã, menor a participação em diversas atividades físicas/desportivas que auxiliam no desenvolvimento das HMF. Finalmente, convém ter bem presente que em decorrência da pandemia da COVID-19 as crianças do presente estudo passaram quase dois anos confinadas nas suas casas com pouca ou nenhuma oportunidade de se movimentarem adequadamente. Ou seja, durante um período tão importante das suas vidas, estas crianças tiveram menos oportunidades para se desenvolverem do ponto de vista motor.
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Em segundo lugar, há que realçar o facto de os meninos serem mais habilidosos do que as meninas. Há estudos que mostram, claramente, estas diferenças e que se devem exclusivamente a fatores culturais - as meninas são menos orientadas e incentivadas a praticarem HMF que envolvam objetos como bolas e bastões. É hoje consensual a importância do domínio destas habilidades face à sua relação positiva com os níveis de atividade física moderada-a-vigorosa durante a infância e a adolescência. Daqui que seja fundamental que professores de Educação Física e treinadores desportivos elaborem estratégias adequadas ao desenvolvimento motor das meninas. Só assim podemos, num futuro próximo, reverter esse cenário.
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Em terceiro lugar, e não obstante a abordagem descritiva dos resultados, os meninos matosinhenses são muito mais proficientes, em todas as idades, que os seus pares açorianos. De notar que é só aos 10 anos de idade que os matosinhenses atingem valores superiores a 60% de domínio nas cinco HMF. A percentagem de meninas matosinhenses que domina as cinco HMF é ligeiramente superior à das açorianas a partir dos 8 anos de idade. É bem provável que, para além das diferenças geográficas, fatores culturais possam estar na base destas diferenças, bem como os modos distintos de implementação de estratégias associadas à exercitação motora “online” durante o confinamento das crianças. É notório, na Figura 1, que à exceção dos meninos matosinhenses aos 9 e 10 anos de idade, os seus pares estão muito longe de atingirem os 60% de domínio das cinco HMF.
A percentagem de meninos e meninas proficientes em cada uma das cinco HMF é muito variável (Figuras 2 e 3). Por exemplo, enquanto que nas meninas açorianas a HMF pontapear teve o menor número de casos proficientes (12%), nas meninas matosinhenses foi no arremessar - somente 15% no nível perito. O receber foi a habilidade em que tanto as meninas açorianas quanto as matosinheses obtiveram um maior número de casos proficientes.
Nos meninos, o rolar a bola foi a HMF com menor frequência de proficientes. Nesta, apenas 28% dos meninos açorianos são proficientes, ao passo que o nível de proficiência dos meninos matosinhenses atingiu quase os 60%. O receber foi a habilidade com maior número de casos proficientes nos matosinhenses e açorianos.
Em suma, se por um lado estes resultados mostram a maior proficiência dos meninos e meninas matosinhenses relativamente aos seus pares açorianos, por outro eles reclamam investimentos diferenciados em termos de políticas públicas, especialmente no plano educativo, que promovam o desenvolvimento adequado das HMF de todas as crianças, aquelas com melhores e piores níveis de desempenho. Que ninguém fique para trás. Reiterando o que escrevemos no início do artigo, o desenvolvimento das HMF impacta de modo substancial diferentes facetas do desenvolvimento das crianças. Um caso exemplar é o da aptidão física que é geralmente entendida como um estado que reflete a capacidade individual de realizar um conjunto diversificado de tarefas motoras, e que está relacionado com aspectos presentes e futuros da saúde. No próximo ponto veremos como o nível de proficiência nas HMF influencia a aptidão física das crianças em estudo após o período pandémico.
3.2. Associação entre as habilidades motoras fundamentais e a aptidão física das crianças
"Mover-se bem para mover-se mais" é a famosa frase presente em diversos artigos e livros que incentivam um estilo devida fisicamente ativo. Um conjunto de investigadores apresentou um modelo conceptual, e relacional, entre a qualidade do movimento, a percepção de competência, a aptidão física e o nível de atividade física de crianças em idade escolar. De acordo com estes investigadores, uma criança proficiente no desempenho das HMF tende a sentir-se mais competente e motivada para participar em diversos jogos e atividades desportivas; em consequência, tende a melhorar os seus níveis de aptidão física e atividade física de nível moderado-a-vigoroso.
Apesar do modelo estar relativamente bem divulgado, existem poucas evidências sobre o(s) modo(s) como crianças com diferentes níveis de proficiência na realização das HMF expressam os seus níveis de aptidão física, especialmente após a pandemia provocada pela COVID-19. Para responder a este problema separamos as crianças matosinhenses e açorianas em três grupos distintos de acordo com o seu nível de proficiência: o grupo 1 foi composto por crianças que dominavam entre quatro e cinco HMF; o grupo 2 por crianças que dominavam entre duas e três HMF, e o grupo 3 por crianças que dominavam, no máximo, uma HMF.
Na Figura 4 temos os resultados relativos às provas de agilidade e velocidade. Lembramos que quanto maior o tempo para realizar as provas tanto menor é a agilidade ou a velocidade, i.e., menor é a aptidão física. Os resultados mostram que o grupo 1 (o que domina o maior número de HMF), independentemente do sexo das crianças, é sempre o mais apto fisicamente. Em contrapartida, as crianças do grupo 3 (o que domina, no máximo, uma HMF) tem o pior resultado nestas provas de aptidão física.
A Figura 5 ilustra os resultados da aptidão física marcados pelas provas da preensão e do salto horizontal em função dos três grupos de proficiência nas HMF e do sexo. Nestas provas, quanto maior for o resultado melhor o nível de aptidão. Tal como anteriormente, meninos e meninas açorianos e matosinhenses do grupo 1 são sistematicamente mais aptos; as crianças do grupo 3 são as menos aptas.
A globalidade destes resultados mostra, claramente, que as crianças que se movem bem tendem a mover-se mais, i.e., participam num maior número de atividades físicas e/ou desportivas que aumentam o seu desempenho nas componentes da aptidão física.
2. 4. Considerações Finais
O presente estudo apresenta resultados importantes sobre o nível de proficiência das HMF de crianças portuguesas, bem como a sua influência num importante indicador de saúde, a aptidão física, no período pós-pandémico induzido pela COVID-19. À exceção dos meninos matosinhenses, as demais crianças apresentam níveis preocupantes de proficiência nas suas HMF (sempre abaixo no limiar dos 60% da taxa de sucesso). Ademais, as crianças com os níveis mais baixos de desempenho nas HMF também têm baixos níveis de aptidão física. Estes resultados são preocupantes.
É importante ter bem presente que o mundo passou por um período pandémico seríssimo em que as crianças tiveram oportunidades muito reduzidas de desenvolver as suas habilidades motoras que são muito importantes para a aquisição de estilos de vida ativos e saudáveis. Este “atraso” está bem evidente nos resultados. Daqui que seja importante promover políticas públicas efetivas que estabeleçam oportunidades diferenciadas e sustentadas de desenvolvimento das HMF, especialmente para meninos e meninas açorianos e para as meninas matosinhenses. Que ninguém fique para trás. Vale a pena recordar que se quisermos ter uma população infanto-juvenil fisicamente mais ativa e com melhores indicadores de saúde, há que intervir logo nos primeiros anos da sua trajetória escolar. Esta janela de oportunidade não pode, nem deve, ser desperdiçada.
A escola possui um papel extraordinário no desenvolvimento holístico das crianças, e as HMF são uma parte muito importante do seu bem-estar físico, cognitivo, emocional e social. Voltamos ao início do argumento central deste artigo - uma criança que termina o primeiro ciclo do ensino básico sem dominar as HMF é equivalente a terminar este ciclo de ensino sem saber ler ou escrever. Esta falta de competência motora tende a impactar negativamente o desenvolvimento integral da criança. Para que no futuro tenhamos uma sociedade fisicamente mais ativa e saudável é fundamental investir seriamente no desenvolvimento das HMF no seu momento oportuno. Deixar escapar esse timing pode comprometer todo o desenvolvimento posterior não apenas motor, mas também físico, cognitivo, afetivo e social das crianças. Cabe à escola planear e implementar projetos pedagógicos ricos e adequados em conteúdos, orientação, incentivos e oportunidades.
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