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1Quatro em cada dez crianças do 1º ciclo do ensino básico têm excesso de peso (44.1%), incluindo obesidade.
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2As crianças açorianas têm maior prevalência (49.1%) de excesso de peso (incluindo obesidade) relativamente às matosinheses (38.6%). O maior número de casos com excesso de peso (incluindo a obesidade) ocorreu nas crianças de 8 e 9 anos de idade.
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3As crianças do projeto RUSH têm uma prevalência mais elevada de excesso de peso do que os seus pares da mesma idade e género à escala global.
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4Crianças com excesso de peso são sistematicamente menos aptas fisicamente.
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5A redução dos níveis de aptidão física é semelhante em meninas e meninos com excesso de peso e tende a aumentar com o avanço da idade

Breve introdução: factos sobre a obesidade infantil e a sua relação com os níveis de aptidão física
Neste artigo trataremos da obesidade infantil e dos seus efeitos negativos nos níveis de aptidão física. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a obesidade, uma doença complexa, como “o acúmulo anormal ou excessivo de gordura que apresenta um risco para a saúde.” O último relatório da OMS publicado em 2022 revelou que 390 milhões de crianças e adolescentes entre os 5 e 19 anos tinham excesso de peso. Destes, 160 milhões tinham obesidade.
O índice de massa corporal (IMC) é o indicador comumente utilizado à escala global em estudos epidemiológicos e de saúde pública para avaliar e monitorizar o estado nutricional das populações. O IMC é uma simples razão entre o peso (expresso em kg) e a altura (expressa em m2). Na população adulta, é hoje universalmente aceite que o sobrepeso (valor do IMC) esteja situado entre 25 e 29.99 kg/m2; os valores de IMC que revelam obesidade são ≥30 kg/m2. Nas crianças, os valores que definem estas categorias ponderais são diferentes uma vez que necessitam de ser ajustados para a idade e género de acordo com a mediana dos padrões de crescimento infantil propostos pela OMS (para mais informações sugerimos a visita a este site: https://www.who.int/tools/growth-reference-data-for-5to19-years/indicators/bmi-for-age).
Uma das questões essenciais colocadas pelos investigadores é a seguinte: qual é, ou quais são, os fatores causadores da obesidade? A investigação realizada ao longo dos anos mostra que é uma mistura de fatores, incluindo características do indivíduo (p.ex., fatores genéticos e hormonais, hábitos de vida, aspetos da saúde mental, etc.) e do ambiente (p.ex., acesso a cuidados primários de saúde, acesso a instalações de recreação e lazer, acesso a alimentos não saudáveis, educação, ambientes obesogénicos, etc.). Uma questão correlata é a seguinte: será que as pessoas com obesidade têm risco aumentado de desenvolveram outras doenças? A resposta é afirmativa. Há hoje evidência científica que a obesidade tende a desencadear o aparecimento de outras doenças crónicas como a diabetes, doenças cardiovasculares e alguns tipos de cancro. Além disso, as pessoas com obesidade tendem a ter o seu bem-estar físico e mental seriamente comprometidos.
Não obstante este quadro, há boas notícias: na maioria dos casos, a obesidade é passível de prevenção, e reversão, se iniciada nas idades mais jovens, i.e., na infância e na adolescência. Na idade adulta, a reversão desta condição é mais difícil.
A pandemia provocada pela COVID-19, com todas as suas restrições e mudanças drásticas nas vidas das pessoas, trouxe novos desafios no combate ao sobrepeso e à obesidade. Portugal enfrentou três vagas de COVID-19. A primeira foi de março a abril de 2020, seguida por uma segunda de outubro a novembro de 2020, e a última de janeiro a fevereiro de 2021. Com o objetivo de proteger os cidadãos e conter a propagação do vírus SARS-Cov-2, o governo Português declarou o estado de emergência, implementando medidas rigorosas, mas necessárias para mitigar os efeitos da transmissão do vírus - confinamento obrigatório em casa, fecho de escolas, restaurantes, lojas não essenciais e fronteiras. As limitações na circulação das pessoas e bens e a mudança inesperada e drástica dos estilos de vida agravaram o problema do sobrepeso e da obesidade. Urge por isso referenciar, em termos “populacionais”, as crianças e jovens em risco, i.e., com sobrepeso e obesidade, por forma a delinear novas estratégias, e mais eficazes, para enfrentar este problema de saúde pública generalizado.
Além da importância fundamental da monitorização do estado nutricional, as evidências atuais apontam para a necessidade de monitorizar os níveis de aptidão física de crianças e jovens. A aptidão física é um estado que reflete a capacidade de realizar de modo eficiente as tarefas do quotidiano; ademais, está associada ao bem-estar físico e à saúde. É hoje consensual que a aptidão física é, também, um marcador do estado de saúde. A aquisição e a manutenção de níveis satisfatórios de aptidão física ao longo da vida estão relacionadas a uma menor probabilidade em desenvolver doenças crónicas, desempenhando assim um papel preventivo muito importante na saúde individual e coletiva das populações.
Relativamente às crianças com peso saudável, tem sido reportado que as que têm excesso de peso são sistematicamente menos aptas fisicamente. Esta é uma “assinatura” preocupante que exige atenção e intervenção, de forma a promover a saúde e o bem-estar destas crianças e prevenir o desenvolvimento de condições patológicas no futuro. É, pois, importante saber se este quadro relacional se manteve depois da pandemia.
No projeto RUSH estudámos o crescimento físico, o desenvolvimento motor e os comportamentos de saúde de crianças do 1º ciclo do ensino básico após a pandemia da COVID-19. Neste artigo, debruçámo-nos sobre a inventariação das prevalências de sobrepeso e obesidade destas crianças, contrastámos os valores obtidos com estudos nacionais e europeus e, verificámos a associação com os níveis de aptidão física. A amostra foi constituída por 2681 crianças portuguesas do continente (Matosinhos, na região norte; n=1273) e da região autónoma dos Açores (n=1408) com idades compreendidas entre 6 e 10 anos.
A tabela 1 apresenta indicadores sociodemográficos das duas amostras. Nas famílias açorianas, 44% tem 1 filho, 51.9% tem 2 ou 3 filhos. Apenas 4.1% tem 4 ou mais filhos. No caso das famílias matosinheses as frequências são as seguintes: 24.6% tem 1 filho, 70.3% tem 2 ou 3 filhos e 5.1% tem 4 ou mais filhos. Relativamente ao nº de pessoas que vivem na casa cerca de 6.1% das crianças açorianas têm uma família monoparental e em Matosinhos a frequência é de 3.8%. Aproximadamente metade das famílias açorianas (46.4%) e matosinhenses (51.6%) têm um agregado familiar com 4 elementos. Relativamente ao nível de escolaridade da mãe e do pai, observamos o seguinte: 28.6% das mães e 46.6% dos pais açorianos concluíram apenas o 1º ou 2º ciclo do ensino básico. No entanto, 32.3% das mães e 32.9% concluíram o ensino secundário ou equivalente (curso profissionalizante) e, 36.6% das mães tem o grau de licenciada ou superior enquanto nos pais este valor é de 23%. Em Matosinhos, 18% das mães e 31% dos pais concluíram apenas o 1º ou 2º ciclo, enquanto que 42.1% das mães e 40.5% dos pais concluíram o ensino secundário ou equivalente. Por fim, 39.8% das mães têm uma licenciatura ou superior e no caso dos pais o valor é de 28.6%.
1. Há um elevado número de crianças Portuguesas com excesso de peso
Os resultados do projeto RUSH mostram que quatro em cada dez crianças (44.1%) têm excesso de peso (incluindo obesidade). Meninas e meninos têm valores semelhantes (44.6% e 43.7%, respetivamente). Relativamente às crianças matosinhenses (38.6%), as açorianas têm uma prevalência significativamente mais elevada (49.1%).
2. A prevalência de sobrepeso e obesidade não é igual em todas as idades.
Figura 2 mostra a distribuição das prevalências de sobrepeso e obesidade entre os 6 os 10 anos de idade. No sobrepeso, os valores tendem a ser mais homogéneos entre as idades, variando entre 19.2% aos 6 anos e 22.0% aos 10 anos. Por outro lado, na obesidade, há uma maior variação nas prevalências, i.e., mais baixas aos 6 anos (12.8%) e mais elevada aos 8 anos (25.5%); aos 10 anos, o valor é de 20.0% (1 em cada 5).
3. As tendências de sobrepeso e obesidade ao longo da idade são diferentes entre crianças matosinhenses e açorianas.
A Figura 3 ilustra as comparações entre os dois locais - Matosinhos e Açores. Na generalidade, há uma menor prevalência de sobrepeso das crianças matosinhenses relativamente às açorianas. Na obesidade, os valores das crianças açorianas são superiores em todas as idades. No sobrepeso, a tendência mantém-se, i.e., crianças açorianas com prevalências mais elevadas do que as crianças matosinhenses, exceto aos 8 anos (21.8% versus 24.0%), açorianas e matosinhenses, respetivamente).
São as crianças de 6 anos que têm a menor frequência de casos de obesidade nos Açores (13.8%) e em Matosinhos (12.0%). Em Matosinhos, é aos 8 anos que há um maior número de casos com obesidade (23.0%), ao passo que nos Açores situa-se entre os 7 e os 9 anos de idade (27.0%).
4. A maior frequência de casos com excesso de peso (incluindo obesidade) ocorre entre os 8 e os 9 anos de idade.
A Figura 4 ilustra a tendência, em termos probabilísticos, das crianças terem excesso de peso (incluindo obesidade) entre os 6 e os 10 anos de idade. Relativamente às crianças mais novas, as mais velhas têm cerca de duas vezes mais chances de terem excesso de peso. Esta chance aumenta até aos 8 anos, e depois segue-se uma redução. Ademais, as crianças açorianas têm 1.38 vezes mais chances de terem excesso de peso do que as do continente. Qual é o grupo de crianças com maior risco? São as crianças açorianas com 8 e 9 anos (a sua probabilidade é de 0.53 e 0.54, respetivamente). Isto significa que uma em cada duas crianças açorianas com 8 ou 9 anos poderá ter excesso de peso. Em Matosinhos, também são as crianças com 8 e 9 anos que têm maior probabilidade de ter excesso de peso (0.43 e 0.42, respetivamente).
5. As crianças do projeto RUSH têm uma prevalência mais elevada de excesso de peso do que os seus pares da mesma idade e género à escala global.
Nesta secção são contrastadas as prevalências de excesso de peso (incluindo obesidade) das crianças do projeto RUSH com a informação mais recente publicada pelo estudo COSI Portugal (https://www.ceidss.com/pt/cosi-portugal/) em crianças entre os 6 e 8 anos de idade e pelo estudo da rede NCD Risk Factor Collaboration (NCD-RisC) publicado na revista Lancet em março de 2024 (https://doi.org/10.1016/S0140-6736(23)02750-2) em crianças entre os 6 e 10 anos de idade. Os dados dos dois estudos referem-se aos anos de 2021 e 2022 – num certo sentido durante e após os confinamentos, embora haja uma enorme variedade de formas de confinamentos entre os países, bem como na duração dos mesmos. Não obstante o cuidado interpretativo face ao facto de estarmos diante de dados numa outra escala e representatividade, é importante descrever onde se situam os resultados do projeto RUSH.
A Figura 5 ilustra as comparações dos valores do RUSH com os do COSI considerando a amostra total do país, no continente na região norte e a região autónoma dos Açores. Há uma diferença de 10.0% do projeto RUSH relativamente ao COSI quando consideramos valores totais. Contudo, quando consideramos as regiões, as diferenças não são tão acentuadas – no continente na região norte e no COSI, 33.2% das crianças tinha excesso de peso e no estudo RUSH, 38.5%. A diferença na região autónoma dos Açores nos dois estudos é somente de 2.4%.
Quando comparamos os resultados em função do género (Figura 6), três em cada dez crianças têm excesso peso no estudo COSI Portugal, enquanto que no estudo RUSH são quatro em cada dez crianças a apresentar esta condição (Figura 6).
Por fim, quando contrastamos os resultados dos dois estudos em função da idade e género (Figura 7), é a partir dos 7 anos que as diferenças entre os estudos se tornam mais evidentes.
No segundo grupo de comparações consideramos quatro clusters de crianças: o primeiro refere-se às participantes no projeto RUSH; os seguintes provêm da terminologia utilizada no referido trabalho da Lancet (2) - europa central e oriental, países ocidentais de elevado rendimento, e a totalidade dos países participantes no estudo.
As comparações estão ilustradas nas Figuras 8 e 9. São as meninas e meninos do projeto RUSH que têm a maior prevalência de excesso de peso. Importa salientar, também, que nas meninas a prevalência de excesso de peso aos 6 (30.0%) e 10 (39.0%) anos de idade está muito próxima da dos países ocidentais de elevado rendimento (29.0% e 37.0%, 6 e 10 anos, respetivamente). As idades onde as diferenças são notórias situam-se nos 7, 8 e 9 anos. Também nos meninos do projeto RUSH, e à exceção dos 6 anos de idade, a sua prevalência de excesso de peso é superior à dos outros participantes no estudo da Lancet.
6. As crianças com excesso de peso são sistematicamente menos aptas fisicamente. Esta tendência aumenta com a idade.
No projeto RUSH, a aptidão física foi avaliada com base em duas grandes categorias: aptidão motora e aptidão musculoesquelética. Na primeira, servimo-nos das provas de agilidade e corrida; na segunda, aplicamos provas de força muscular (preensão manual e salto horizontal). As Figuras 10, 11, 12 e 13 mostram que meninos e meninas com excesso de peso (incluindo obesidade) são, na generalidade, menos aptos fisicamente relativamente aos normoponderais. A exceção situa-se nas meninas de 6 anos de idade nas provas de salto horizontal e agilidade e nos meninos de 6 anos de idade nas provas de velocidade e agilidade.
As diferenças de aptidão física entre crianças normoponderais e com excesso de peso tendem a aumentar à medida que avançamos na idade, com exceção da prova de preensão manual – as diferenças são constantes ao longo do tempo.
7. Em conclusão: o combate ao aumento do sobrepeso e obesidade requer ações concertadas e articuladas entre diferentes atores sociais: autarquias, organizações de saúde, comunidades escolares, clubes desportivos, famílias e as próprias crianças, para que se encontrem soluções eficazes e sustentáveis.
1º Os resultados do projeto RUSH revelaram que após a pandemia da COVID-19, as prevalências de sobrepeso e obesidade nas crianças Portuguesas (Matosinhos e Açores) para além de se terem mantido em níveis altos são, em muitos casos, mais elevadas quando comparadas com outros estudos a nível nacional e europeu. Este facto requer vigilância epidemiológica.
2º Além disso, mostramos que a prevalência de crianças açorianas com sobrepeso e obesidade é maior quando comparada com as crianças que vivem em Matosinhos (região norte do continente). Este resultado sugere a existência de diferenças regionais na prevalência de excesso de peso que devem ser considerada aquando do desenvolvimento e implementação de programas de intervenção, bem como a sua monitorização.
3º Adicionalmente, este estudo destacou, também, o impacto negativo do excesso de peso nos níveis de aptidão física das crianças. Este efeito é substancialmente notório nas crianças mais velhas.
Convém ter bem presente que a OMS estabeleceu, junto dos estados membros, a meta de travar o aumento da obesidade até 2025. Os resultados do RUSH sugerem que nestes locais a meta pode ser dificilmente alcançada. O impacto social, económico e de saúde pública do excesso de peso das crianças é considerável.
Não obstante as indicações do programa nacional de saúde e da sua referência ao combate à obesidade infantil (https://www.dgs.pt/em-destaque/plano-nacional-de-saude-revisao-e-extensao-a-2020-aprovada-pdf.aspx), bem como as indicações, genéricas, do programa oficial de Educação Física no 1º ciclo do ensino básico sobre a importância do desenvolvimento da aptidão física (http://www.dge.mec.pt/educacao-fisica) avançamos com as seguintes sugestões:
1º A urgência em desenhar novas abordagens à gestão de peso desde a infância envolvendo de modo mais assertivo escolas, famílias e as próprias crianças. Estas abordagens devem considerar, também, os departamentos educativos das Câmaras Municipais face à sua importância nas comunidades escolares, bem como do grupo de professores de Educação Física.
2º As ações devem ser direcionadas para a educação de um estilo de vida saudável das crianças com foco especial na adoção de comportamentos alimentares mais equilibrados a cargo de nutricionistas para a elaboração de agendas de refeições nas escolas. É esperado também que envolvam as famílias para gerirem de forma mais consentânea os seus hábitos nutricionais.
3º É importante que as Câmaras Municipais, através dos seus departamentos educativos, coloquem na sua agenda política o aumento do número de aulas de Educação Física no 1º ciclo do ensino básico – de uma para duas aulas semanais nos quatro anos de escolaridade. O ideial seria três aulas por semana.
4º É importante que nas aulas de Educação Física, ou no treino de iniciação desportiva infantil, seja dada uma importância capital ao desenvolvimento das habilidades motoras fundamentais por ser o maior garante da participação generalizada das crianças em atividade física de nível moderado-a-vigoroso que tem um efeito cumulativo na sua perceção de competências e aptidão física e na ajuda no regulamento do peso corporal.
5º Os clubes desportivos, e os treinadores que lidam com crianças, também devem ser convocados para este “combate” desenhando e monitorizando novas abordagens para que todas as crianças, mesmo as que têm sobrepeso e obesidade, sintam sucesso nas mais variadas tarefas do treino e da competição. Que nenhuma criança fique para trás.
Em suma, é imperiosa uma articulação estreita entre diferentes atores sociais: famílias, comunidades escolares, organizações locais de saúde, clubes desportivos e autarquias. A repartição de responsabilidades, a implementação dos programas com metas alcancáveis e a sua monitorização são janelas de oportunidade que se espera eficazes e sustentáveis para travar, e inverter, o aumento sistemático do sobrepeso e obesidade, aumentar o tempo dedicado a atividade física moderada-a-vigorosa, os níveis de aptidão física e participação desportivas das crianças do 1º ciclo do ensino básico.
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