A Ciência e a Tecnologia na configuração de Portugal e Espanha ao longo dos últimos cinco séculos
É inegável que a Ciência desempenha um papel fundamental nos nossos tempos. No entanto, qual foi o seu desenvolvimento na História, qual é a relação que tem com outras disciplinas e como se refletiu na construção das nações ibéricas?
Quem quiser aprofundar estas questões ou iniciar-se nelas com rigor, mas simultaneamente de forma apaixonante, pode empreender uma viagem extraordinária por duas obras excecionais.
A primeira, Ciência, Tecnologia e Medicina na Construção de Portugal, coordenada por Maria Paula Diogo e Ana Simões, é composta por quatro volumes e constitui a contribuição mais recente da Historiografia portuguesa sobre a evolução da Ciência, da Tecnologia e da Medicina (CTM) no país luso ao longo de mais de cinco séculos de História.
Esta magnífica iniciativa coletiva apresenta ao leitor um rico panorama atualizado do desenvolvimento da CTM em Portugal, ao mesmo tempo que situa a sua modernidade científica e tecnológica numa permanente dialética entre «contestação» e «inovação», em oposição ao conservadorismo e ao autoritarismo. Constitui uma obra bem fundamentada e compreensível numa sociedade tradicionalista e também autoritária, marcada pelas quatro décadas do Estado Novo português que, à sua maneira, como projeto político e social alternativo, faz apelo à Ciência em nome da modernidade, entendida como intrinsecamente progressista e inovadora.
O quarto volume, Inovação e Contestação (Séc. XX), coordenado por Maria Paula Diogo, Cristina Luís e M. Luísa Sousa, é o que iremos abordar aqui. Nele encontramos um roteiro que nos leva a percorrer diversos temas desde a instauração, em 1910, da Primeira República em Portugal até aos desenvolvimentos mais recentes da Ciência portuguesa, das suas políticas e instituições , todos organizados de forma diacrónica. Embora este volume ainda não ofereça uma visão clara das narrativas em conflito, já recolhe alguns aspetos consensuais sobre o processo histórico do século XX relativamente ao papel da CTM na sociedade portuguesa. Daí que o leitor possa observar, em especial, a sincronia entre o processo nacional e um internacionalismo muito influente a partir do final da Segunda Guerra Mundial, tema recorrente nas comunidades científicas. Independentemente da diversidade dos ensaios, que se situam entre «o contraste e a complementaridade», encontramo-nos perante a tese de que a Ciência, a Tecnologia e a Medicina não podem «continuar a ser descartadas da análise histórica» devido às suas repercussões materiais e simbólicas, essenciais para a afirmação da identidade do país.
Inovação e Contestação (Séc. XX) reúne os principais académicos do panorama historiográfico português, incluindo os das novas gerações, e caracteriza-se por os seus autores pertencerem a diferentes escolas e grupos de investigação, «com tradições diferentes e formações de base também diversas». Assim, ao longo de vinte e cinco capítulos, todos eles de diferentes autores, este volume faz-nos entrar na história do desenvolvimento e da circulação do conhecimento técnico-científico em Portugal, com alguns contributos sobre o seu quadro político-institucional, o que revela uma certa maturidade da Historiografia da Ciência, em geral de tradição mais internalista.
A obra, estruturada em capítulos relativamente curtos e sintéticos, pensados para o grande público não especializado, mas sim interessado , oferece ao leitor a oportunidade de se iniciar em vários temas, como a reforma republicana do ensino superior universitário; a construção da medicina científica portuguesa; o jornalismo científico em Portugal; as Ciências dos territórios portugueses ultramarinos; a institucionalização das políticas científicas; as infraestruturas técnico-científicas e de laboratórios do país; a engenharia portuguesa e a física e engenharia nucleares; o desenvolvimento técnico-científico em África; as políticas científicas posteriores a abril de 1974; a comunicação e divulgação da Ciência, e a mobilidade internacional da comunidade científica.
A Ciência, a Tecnologia e a Medicina não podem «continuar a ser descartadas da análise histórica» devido às suas repercussões materiais e simbólicas
Trata-se de uma publicação ambiciosa que destaca o empenho da Historiografia em compreender a contribuição da CTM para a História contemporânea de Portugal. Oferece uma «porta de entrada» para os leitores mais leigos interessados em conhecer o caso português, e também será muito útil para as futuras gerações, que encontrarão nela um valioso instrumento para compreenderem a evolução da Historiografia da Ciência em Portugal. É de esperar que a visão original e atual desta obra propicie diálogos mais alargados e contribua para comparar hipóteses, desconstruindo narrativas e forjando leituras alternativas sobre a CTM e as suas implicações no caso das nações ibéricas.
A segunda obra, Fantasmas de la ciencia española [Fantasmas da Ciência Espanhola], do historiador da Ciência Juan Pimentel, oferece-nos um percurso fascinante pelas inter relações entre a Arte e a Ciência nas sociedades hispânicas nos cinco últimos séculos. As oito partes do livro são interdependentes, mas ao mesmo tempo autónomas, pelo que é possível lê-las pela ordem de preferência de cada um.
Assim, podemos mergulhar nesta obra singular através, por exemplo, do oitavo e último capítulo, intitulado «“Naturalia” en la Pinacoteca» [«Naturalia» na Pinacoteca]. Nele faz-se a análise da exposição que o artista Miguel Ángel Blanco apresentou no Museu Nacional do Prado entre 2013 e 2014, e em que pretendia recuperar o projeto original desse edifício neoclássico. O arquiteto do projeto, Juan de Villanueva, concebeu-o como um complexo científico e tecnológico que iria conferir um lugar de destaque às joias da natureza do que então era um império tricontinental. Décadas depois, contudo, a Arte acabou por obscurecer a Ciência, de modo que as imagens criadas pelos pintores se sobrepuseram às dos cientistas e as deixaram ocultas.
É este o argumento desta estimulante obra. A Ciência desenvolvida na sociedade espanhola entre os séculos XVI e XXI foi um elemento fantasmagórico ao tornar-se uma prática com visibilidade restrita. Por isso, ainda que «continue a emitir sinais luminosos desde o passado», ocupa «um lugar afastado e sombrio» na nossa consciência coletiva.
Para nos aproximar destes jogos de luzes e sombras, o autor emprega a rotação espectral. Quem a utiliza persegue sujeitos e objetos do passado ocultos por terem sido marginalizados. Não obstante, essas coisas e seres humanos deixaram pegadas: espectros da sua presença que nos espreitam e perseguem. Os fantasmas atuam assim, como nos é lembrado na brilhante introdução desta obra. Nela, Pimentel confessa o seu fascínio pelas imagens, rastos singulares deixados pelos nossos antepassados. Aparecem e desaparecem, daí o seu carácter espectral.
As imagens são fundamentais na estrutura, discurso e argumento de Fantasmas de la ciencia española. Com interpretações subtis, dotado de sólidas ferramentas teóricas e apoiado numa ampla gama de fontes, o autor guia-nos por oito episódios científicos, expostos em potentes recursos visuais.
Três capítulos estão relacionados com problemas associados à interligação entre conhecimentos europeus e saberes indígenas durante a ação colonial da monarquia hispânica em territórios americanos. Pimentel explica-nos o protagonismo dos conhecimentos indígenas no avistamento do mar do Sul por Núñez de Balboa e como foram ocultados numa carta portulano. Dá-nos a conhecer o papel crucial dos saberes nativos na grande expedição «fantasma» de Francisco Hernández, protomédico de Felipe II de Espanha, em terras da atual República mexicana, e nos aproxima do trabalho criativo dos pintores indígenas que colaboraram com o botânico José Celestino Mutis no espaço da atual Colômbia, cujo tesouro iconográfico permaneceu invisibilizado durante muito tempo.
Outros quatro episódios mostram-nos a importância dos recursos iconográficos nos discursos científicos. Correspondem a vários trabalhos da época barroca ou contemporânea que possuem um certo carácter fantasmagórico. Manifesta-se assim no atlas microscópico que Crisóstomo Martínez elaborou no século XVII; ou nos mapas em que os geólogos e paleontólogos enfrentaram a difícil tarefa de apreender o espaço e o tempo do novo Estado liberal do século XIX, e também nos desenhos e fotografias que permitiram a Santiago Ramón y Cajal atingir a glória com o Nobel da Medicina e Fisiologia de 1906 e consolidar uma escola, muito influente entre neurologistas de todo o mundo incluindo os portugueses , que se dispersou como consequência da guerra «incivil» de 1936 a 1939. Por último, também conversa com a literatura sobre a presença das mulheres na nossa cultura científica. Pimentel estuda as imagens que a espetroscopista Piedad de la Cierva produziu durante o franquismo e os quadros da exilada Maruja Mallo. Umas e outras são expressivas da relação entre a Arte e a Ciência que o autor desta obra singular soube explorar e desvendar de forma magistral.
Pimentel confessa o seu fascínio pelas imagens, rastos singulares deixados pelos nossos antepassados. Aparecem e desaparecem, daí o seu carácter espectral
Fantasmas de la ciencia española merece ter leitores em muitos lugares, e Portugal não é exceção, visto que as atividades científicas nos países ibéricos tiveram paralelismos: permitiram que construíssem os respetivos impérios no passado e foram decisivas para configurar os seus Estados atuais. Além disso, estiveram muito interrelacionadas em diversas épocas. Assim, entre 1921 e 1970, as sociedades para o progresso das Ciências de Portugal e Espanha realizaram oito congressos conjuntos. O primeiro teve lugar no Porto, há exatamente um século. Precisamente, a conferência plenária apresentada por Ricardo de Almeida Jorge, considerado o fundador da saúde pública moderna em Portugal, intitulava-se «A intercultura de Portugal e Espanha no passado e no futuro».